Entenda como a Economia Comportamental pode ajudar na mudança de comportamento necessária para a retomada do trabalho presencial
Quase 200 dias depois que a Organização Mundial da Saúde declarou oficialmente a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), o mundo ainda está buscando entender o que causou a doença. E, embora mais de uma vacina já esteja em estado avançado de desenvolvimento, líderes e cidadãos dos cinco continentes seguem lidando com as consequências e transformações provocadas pelo vírus, que já contaminou mais de 31 milhões* de pessoas e matou mais de 950 mil.
No Brasil, desde o primeiro caso confirmado, em março, já temos mais de 4 milhões de pessoas contaminadas e mais de 135 mil mortes. Ainda assim, a exemplo de outros países que foram mais ou menos atingidos, a volta à normalidade já é assunto na boca de governantes e cidadãos.
Um dos motivos para que as pessoas desejem voltar à vida normal, mesmo sem evidências de que a doença esteja arrefecendo, é explicado pelas ciências comportamentais. Trata-se da Fadiga comportamental:
As pessoas literalmente se cansam de repetir as mesmas atitudes (no caso, cuidados com higiene, distanciamento social, etc.) durante muito tempo.
No caso da pandemia, a mudança da vida normal para a quarentena também foi muito brusca, o que exigiu ainda mais energia mental. Assim, depois de mais de seis meses de isolamento, as pessoas começam a relaxar nos cuidados: não mais aplicam álcool gel com tanta frequência ou deixam de higienizar as compras, por exemplo. E passam a se questionar: caso esses sacrifícios sociais e econômicos não fossem tomados, a situação não seria a mesma?
Cedo ou tarde será hora de planejar a retomada para o trabalho presencial. E nada será como antes, principalmente no início, enquanto os protocolos de higiene e distanciamento forem a regra. Nesse caso, especificamente para grandes escritórios e indústrias, onde a aglomeração e a alta circulação de gente sempre ocorreram, os departamentos de comunicação interna e de recursos humanos deverão ter um cuidado redobrado no planejamento a fim de combater alguns vieses cognitivos e comportamentos que podem atrapalhar o cumprimento das normas sanitárias e comprometer a retomada das atividades econômicas.
O primeiro viés a ser levado em conta é o do status quo (ou viés da inércia). Trata-se da tendência humana de manter o estado atual das coisas. Passados seis meses, as pessoas já se acostumaram em ficar em casa, seja sem trabalhar ou em home office (nesse caso, inclusive, o viés teve que ser combatido na transição entre o trabalho presencial e o remoto). Em termos gerais, as pessoas não estão mais acostumadas à rotina do escritório.
Portanto, será natural que elas se sintam deslocadas até que voltem a se adequar. Para o planejamento das empresas, é essencial aproveitar esse período para firmar um novo “acordo comportamental” a fim de garantir o cumprimento das novas normas. E também não esquecer de levar isso em consideração na hora de medir desempenho e produtividade.
Mencionei anteriormente a fadiga comportamental como um fator que leva as pessoas a relaxarem nos cuidados pessoais e desejarem com mais intensidade a volta vida normal. Outros vieses cognitivos, exemplificados por raciocínios, podem influenciar negativamente no cumprimento das regras:
Heurística da disponibilidade: “Não conheço ninguém que voltou ao trabalho e foi contaminado, logo, é seguro que eu volte também.”
Excesso de otimismo: “Faço exercícios e sou mais saudável do que a maioria, logo, estou mais preparado para enfrentar a doença.”
Preferência a gratificação imediata: “Não aguento mais ficar em casa, prefiro correr o risco de ficar doente e ir trabalhar.”
Aversão à perda: uma consequência negativa traz mais descontentamento do que uma consequência positiva na mesma magnitude traz felicidade. “Perder o emprego importa mais do que me manter a salvo da doença.”
Dessa forma, os gestores devem reservar atenção e recursos especiais na hora de comunicar as novas regras dentro do escritório ou da fábrica. As empresas não devem repetir o que já foi feito por governos e órgãos de saúde: imposição de atitudes e repetição de normas e alertas.
Elas continuam valendo, mas o objetivo deve ser ir além e buscar exemplos de como as ciências comportamentais podem ajudar a encorajar ações e comportamentos necessários para manter um ambiente de trabalho seguro mesmo durante a pandemia.
Tendemos a ser muito vagos nos comunicados. “Lave suas mãos regularmente, mantenha distância social, comunique caso apresente sintomas, venha ao trabalho somente se precisar.” Embora objetivas, essas frases não deixam claro que tipo de comportamento deve ser seguido.
Prefira seguir na linha: “Lave suas mãos depois das refeições, mantenha dois metros de distância do próximo, envie um e-mail para Fulano caso tenha sintomas, venha ao trabalho às segundas, quartas e sextas”.
Um dos instrumentos da economia comportamental mais utilizados para se chegar a uma mudança positiva de comportamento é o nudge. Um experimento no Hospital Universitário de North Shore, em Long Island, Nova York, utilizou de incentivo social, recompensa imediata e acompanhamento de progresso para incentivar médicos e enfermeiros a lavarem mais as mãos.
Por meio de um sistema de monitoramento, um ponto era concedido a cada vez que um profissional lava as mãos. Conforme vão aumentando, os pontos vão sendo exibidos em um painel ao vivo. Com isso, os médicos passaram a lavar as mãos 90% mais vezes.
A especificidade das campanhas deve ser acompanhada por exemplos inequívocos. Lembre-se: as pessoas estão ansiosas para voltar ao trabalho, ao mesmo tempo em que se sentem exaustas pela quarentena. A empresa precisa passar certeza e se comunicar a fim de deixar as expectativas claras. Tanto no teor dos comunicados (“Lave as mãos durante 50 segundos desta forma”, “Use máscara facial assim”), quanto nos locais (“Permitida a entrada de somente 4 pessoas neste elevador”, “Esta escada é apenas para descida”, “Este corrimão é limpo regularmente”).
Aliás, o ambiente é uma parte importante no processo de estimular e reforçar atitudes. Mudanças no ambiente físico geral incentivam mudanças de comportamento — se tudo estiver igual, as pessoas vão se comportar como antes. Assim, sinalizações físicas e alterações no layout são essenciais para vencer o viés do status quo e apresentar algo novo frente à “fadiga comportamental”.
Em resumo, a necessária volta ao trabalho – ainda que mais ou menos distante em cada uma das regiões do Brasil – exige atenção especial das empresas. A transição entre a quarentena em casa e o retorno ao escritório representa uma ruptura e traz consigo muitos vieses cognitivos.
Apesar disso, oferece uma janela de oportunidade para que os gestores estabeleçam os novos protocolos e conquistem, com maior chance de sucesso, as mudanças comportamentais necessárias para que se mantenham a segurança e a saúde de todos.
Fonte: Revista Melhor
* (valores da pandemia atualizados por DBS Partner em 21/09/2020)
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